Luto

Edição Especial

Quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Rumba à minha Mãe San Mosa

Oh Mãe! Qual a bronca da minha Mãe, jamais ter existido no tempo, nem na presença dos filhos?
Preferia não parecer novidade, nem uma só linha, a exatidão tornada pública, quando tudo mais que oiço, nestes dias de consolo às lágrimas de sangue do sangue, é confortante. A minha Mãe, finalmente, foi descansar, após a dura e persistente batalha na lista, a que lhe pertencia partida, num especial Dia, Santo Domingo, o inesquecível e estreante do ano 2024, os algarismos pares, similares às suas idades.

Minha gente! Minha Mãe, nunca foi minha Mãe!? Nem tia, nem prima, nem madrasta?
Ela, simplesmente, nunca existiu, nem nunca teve filhos roubados, apanhados no caixote do lixo ou noutro canto de crianças por registar, mal cuidadas ou ao abandono? Ela nunca deu à luz. Nem à mim, o preto - quanto ela – e a mestiça, para exposição alheia no hospital central, o meu pai, jovem de olhos-de-gato de Príncipe, me recusar ser o filho?
A notícia na emissora nacional, estava completamente errada? Um pouco viciada! Apenas Trindade, foi-lhe insistente trincheira? A funcionária do Registo que deveria certificar-lhe, na hora, o embarque, após o médico Eric da Upe de Panyny, o seu sobrinho, ter rubricado e despachado a papelada, recusou, temperamentalmente, viagem à última morada, porque nunca existiu a minha Mãe!?

Ainda assim, numa espécie de Mãe, benevolente, desaparecida do convívio da vaidade que dava brilho à tua Trindade, deixaste todo mundo da linhagem familiar, gozar Natal e beneficiar de Boas Entradas, em felicidade para lavar mazelas do Velho Ano? Que generosidade!? Oh Mãe!

Nunca tiveste filho, nem um só? Nunca foste gente? O nome e a idade, os 90 anos, não eram teus? Nem Batista, Joaquim, Raul, eu e os outros, dia e noite, beberam Mãe, ao teu leite puro? Como foi possível às estatísticas? Eu sempre vasculhei teu baú e jamais me apercebi de que minha Mãe, não era a minha Mãe, nem teve filhos.

Afinal, és do ano de 1929 e, não erradamente, 1933, com que nos enganaste o quotidiano? Não! Não batem certo, o Massacre que te fugiu, temporariamente, da vila e velhice. Como foi possível acontecer tamanha gincana para lágrimas crescerem charco nos olhos do teu filho, longínquo, no frio polar e que, na madrugada imediata a tua viagem, correu antes das quatro horas, mais tarde, a esposa também, ao suor e à energia dos netos que, verdade ou mentira, não são a sequência lógica dos teus genes?
Mãe! Dez anos atrás, quando ficaste aprisionada ao leito, como muito antes, o tempo assumiu nunca faltar-te nada, quer sorrisse o sol, quer trovejasse a chuva tropical. Nada!
O fisioterapeuta recebeu mensalidades, meses dobrados e… por ti, os filhos cumpriram ao testamento «eu não fico na geleira, nem para oportunamente!»

A missiva que me inspiraste a escrever, manhã cedo de Santo Domingo, após eu ter sido informado do silencioso fôlego, através dos supostos filhos e netos, em São Tomé, reportado do médico Espírito Santo, o doutor Afelício, de formação cubana para o ilustre humanismo e da enfermeira Juliana Garrido – gratidão expressiva à prestativa e incansável dupla - que nos últimos meses, com cuidados paulativos, ressuscitavam-te de soro e terapêutica às células envelhecidas, quase todas rejeitadas à sobrevivência de sangue ao ar do teu pulmão, dizia eu, a carta também, não estava correta?

Ninguém imagina de que a riqueza garantida por ti, ainda éramos inocentes, foi «vão à escola meus filhos para escreverem cartas que valerão orgulho, decência e competência à vida». Nada mais! Todo o resto, viria por acréscimo ao saber e à paciência para que no dia da tua despedida, o povo corresse atrás como se fosse banda de música, tal e qual, décadas passadas, em Março de 1981, Trindade e país inteiro parassem ventania de plantas e assobio dos pássaros, ao Comandante.

Na época, sem rua ser abrigo, éramos meninos rotos e descalços, mas a Dona Alda Graça, a presidente parlamentar, esteve presente e fez o mesmo cortejo ao teu Menino de Ouro, o Pioneiro Horácio, o irmão por inteiro da Arlete, o casal dos filhos do professor Manuel da Trindade Sousa Pontes, o patronato da escola da vila. Oh Mãe!

Não resisto navegação ao fundo do baú das cartas do enfermeiro. Levaste contigo aquela curiosidade na minha criancice tonta quando me surpreendeste, entretido, a coscuvilhar cartas religiosas de amor do namorado de Madalena, salvo o Cabral? Li todas para o teu sorriso, uma a uma. Uma outra, o remetente, era o João Torres. Afinal, ele foi nacionalista semelhante ao teu guia da viagem - 7 de Janeiro - o Lau Fret Chong?

Ao propósito, o ministro, o teu sobrinho, teria estado na despedida da tia, do jeito expedito que «Mosa sorridente e brilhante nas panelas de Nossa Senhora de Nazaré e Deus Pai, recebia os irmãos de Boa Morte, demais familiares, amigos e desconhecidos no quintal para esbanjarem fim-de-semana festivo e logo, na esquina, tirarem pés nos Leonenses do seu coração, no fundão de “sô” Gido?»

Embora nunca teres tido existido, nem tão pouco, os filhos serem teus, jamais deste à luz, a algum, mas fizeste-lhes homens e mulheres, em busca de sonhos para que um tempo atrás, aquando do ataque de AVC, ficaste largada à sorte dos netos, Alailzi, Miguelinho e Celma, cobertos pela infalível e humilde mesada de sobrevivência, empregada, Internet e assistência, em saúde. Pouca coisa de filhos para garras de Mãe que foi exemplar guerreira!

A rumba de gratificação, óbvio, é merecida ao trio, os teus netos. Apesar das dores de cabeça adolescente, felizmente, na juventude, fizeram nascer-te bisnetos de enganar às dores e dar o possível sossego à total Falência Orgânica da tarde de Domingo Santo, o teu último Dia, com a Anatília, a mexer bolsa às necessidades da Avó.

Oh Mãe! Mas jamais, na realidade, a minha Mãe teve filhos, nem tão pouco existiu, a tal senhora? Os pais enganaram lei à natureza e igreja? Quem foram eles? Os teus pais?
Sem ser Mãe, andaste assim, a engravidar e parir aos teus namorados? Para aí! A vila tem culpa no cartório, apesar da rumba de agradecimento público, aos presentes no teu desfile e ao mundo.

Foi conivente com a mentira e toda essa montagem, no mínimo encantadora, sem sentido de ter deixado linha de levar às barras do tribunal, os filhos todos, nem que foram filhos da Mãe, uma vizinha qualquer que só existisse um dia à vila condenada. Como foi possível isso, aos olhos de todos? As tias, os tios, as primas, os primos dos primos que nos ensinaste a partilhar afetos, só agora, não são mesmo, meus familiares?

A Avó «San» Tilha que tanto amou os netos todos, afinal, não foi nossa Avó!? Eu já convivia com a insólita realidade do meu pai, que afinal, não era filho do meu avô.
Verdade pura! Faz balouço, a qualquer um, mesmo à Betinha, a tua nora, em eu ser, o puro filho, do filho do meu avó, mas não sou filho do meu pai. Agora, nem Mãe tive e jamais terei, nem uma? Como vim parar a esse mundo de homens, santos-pecadores, dilatando o ventre da parturiente que soubeste, possivelmente, ceder ao espetacular nó à Maria José, seguido de expulsão uterina, no mesmo dia, aos dois bebés?

Oh Mãe! Compreenda ao teu filho! Não é censura de denúncia pública de teres sido teimosa, ludibriando todo mundo, ao ponto do Estado vedar-te a coisa mais nobre que restava ao teu corpo, cansado e minguado, quase centenário, à última morada, nem eu, o filho da Mãe de uma delas que conseguiste ser, aguardasse o teu Certificado de viagem para «ver e crer» na verdade.

As missivas, em que me puseste na linha reta da estrada transparente, contém curvas e perigosas. Quase banal, os filhos não terem pai. Apenas Mãe! A primeira vez, em que enfrentei filhos que só têm pai, fiquei estupefacto. Como é possível, o Estado registar filhos ao pai, sem direito de Mãe, a parturiente que lhes deu luz à existência, em gritos e soluços sufocantes!? Apenas pai!

Oh Mãe! Era esse o mistério? Ninguém previu que os anos de aflição, em dores contínuas, quase 11 anos, no leito, completaria em Fevereiro próximo, de longe, deveu-se resgate do último abraço, segredo despistado no fundo de mala ou debaixo da pedra grande, mas sim, os dois nomes oficiais e registados, Ambrósia e Bebiana, em conflito silencioso. As duas Mães, uma morta, em sequestro da viva, a qual eu reservava esperança. A viva, infalivelmente, ressuscitando a morta.

Oh Mãe! Fiz pesquisa à Net – você nada entendia disso, apesar de quinta-feira, a última do ano, passado, cara-a-cara e no colo da neta, a Alailzi, abençoaste ao trajeto do filho e da família – a busca de história de vida da dimensão poética da minha Mãe.

Não te sintas arrependida pela tristeza com que tiveste força alegre e, sem nunca desistir, subiste e desceste montanhas verdes com os filhos às costas e também, imitando aos pássaros com tudo que não deixavas entreter a tua garganta, apenas para encher estômagos das inocentes crias! Não há consequências! Foste única neste mundo!

Mãe! Tens ouvidos espirituais! Estive no Vaticano. Nas cartas confiadas à tertúlia, já reivindiquei de que éramos, o único português africano, sem Bispo. Sorte grande! O Papa Francisco acaba de conferir poderes de Bispo ao Sacerdote, o peregrino João de Ceita Nazaré. O Dom João Nazaré, de Galo-Cantá, passados cinco séculos de evangelização das ilhas, é o primeiro Bispo, filho das terras abençoadas de São Tomé e Príncipe.

O país aguardava da bênção papal para que a luz brilhe, cedo, aos carris de consciencialização harmoniosa do homem são-tomense, na diferença e no contraditório, rumo à desejada Prosperidade? Porque não esperaste, um pouco mais, que fosse ele, o ideal de encomendar a tua alma pura?

Mãe! Ainda que não tivesses dado à luz, às crianças, entre pernas e doçura de leite, dos teus seios, conseguiste ser divinal, a mais bela das Mães do mundo pelo que lágrimas, em correnteza teimosa, simplesmente, escrevem rumba de amor à dança da tua viagem ao Descanso Eterno no Céu Divino. Que a terra seja leve ao gigantesco Amor, dia e noite, emprestado aos teus filhos, netos e bisnetos!

Minha Mãe Mosa, Descanse em Paz Eterna!

O teu filho,
José Maria Cardoso