GRATIDÃO

Edição Exclusiva

Domingo, 4 de Fevereiro de 2024

«Dêxa» a minha Mãe San Mosa

Mãe! Ambrósia, a Mãe dos meus irmãos, nascida em 1933, faleceu no 1º Santo Domingo de 2024, dia 7 de janeiro, aos 90 anos. Bebiana, a desconhecida minha Mãe, nascida em 1929, faleceu no mesmo dia com uma outra idade, 94 anos. Um só corpo frágil de mulher na, insólita, disputa de duas Mães. Foste mesmo, a Mãe guerreira para vida e lenda, únicas aos filhos!
O Estado laico e hostil aos nacionalistas distraiu-se do funeral de Estado ao teu camarada de viagem, Jośe Fret Lau Chong - as sentidas condolências à família e aos familiares - mas sem subterfúgios, em comunhão com o Coração da Santa Sé, para «ver e crer», já deve estar tapando buracos e lavando cara à Cidade Católica, Santo Tomé. Foi assim, na realização, em Agosto passado, da XIV Cimeira da CPLP.

As ilhas de São Tomé e Príncipe, em harmonia religiosa, apoteose e aspiração na bússola, perante convidados estrangeiros de gala, vão abençoar a Ordenação Apostólica do filho, Dom João de Nazaré – nome santo - o Primeiro Bispo da terra, cerimónia histórica, a decorrer no próximo dia 17 de Março, Santo Domingo.
Oh Mãe! No rigor tradicional, todo mundo silenciou de nós, a viagem, sem que a tua alma pudesse arrefecer pés no chão divino, logo na quarta-feira, imediata, o dia 10 de janeiro, do teu amicíssimo da Trindade, o alegre enfermeiro Eliseu Cunha. Condolências à família e aos familiares enlutados.

Esteira na sala europeia

Mãe! Inacreditável! Há décadas que deixei a terra – tempo corre bastante veloz que a pressa dos projetos - mas “gente-de-laia”, sem necessidade para tal, acusa-me de que as ilhas, caridosas, não saíram de mim. Não entendo! Como eu havia prevenido ao ganha-pão da necessidade de libertar-me no 1º fim-de-semana, após a perda de ente querida, São Tomé e Príncipe, esteve a altura e medida, ao ponto do Five, embora francês, nem se importar com tanta gente, não rotineira de seu silêncio e suas traquinices acrobáticas com direito a médico, vacina, dieta de luxo e até passaporte individual com que vai atravessando fronteiras europeias.

Mãe! Em traje de casaco, saia e “quimone”, tal e qual, há anos, quando inesperadamente, Deus recolheu ao Céu, a tua brilhante neta, a Ellyzé, na altura, universitária de Londres, nos radiosos vinte e seis anos de idade, na realidade, as embaixadas voltaram a invadir aos Alpes-mediterrânicos para cuidar de vivos, afagando-nos lágrimas de San Mosa, a minha Mãe. Banana-pão com o molho de bacalhau; feijoada e arroz branco; banana-pão frita com “pipis” associaram-se à iguaria de banana-pão pontada do Equador com o estofado de galinha-rija da tua nora; frango assado; espetada de banana-pão adoçando fatia do salgado chouriço, demais aperitivos da Betinha e, não só.
Só de cheiro ao elegante apetite de Nazaré e Deus Pai, a mesa de Natal, esticada outra vez, “chocalhou” estômagos a ativar publicidade por cada olhar e abraço de condolências. Os embaixadores deram boleia a garrafas de vinho, cerveja, açúcar, chá, salgados, sumo, água e baralho de cartas - não tinha meditado nisso - com que reforçaram a oportuna gastronomia caseira e café; garrafas de vinho; Whisky; vinho do Porto; Bagaceira; Champanhe e Champomy. Tudo, a tradição, sem ser onerosa, saltou água atlântica até ao coração comercial do povoado gaulês, em homenagem ao repouso eterno da negra.
Oh Mãe! As garrafas de Champanhe e Champomy, franceses, os excessos da quadra festiva, surgiram de última hora para ludibriar a ousadia que cedida, sem destreza, a família rebentou em benevolência à solidariedade são-tomense. Um aniversariante, por sinal, o teu enteado, com quem enviei-te o andarilho, em 2019, encomendado à farmácia francesa para voltares a andar – minha escuridão, pelo despacho no avião, viu na última “gravana” triste, mais de cem euros, jogado no lixo do teu quintal – ele havia «matado boi e comprado tambor de vinho» para festa francesa, no passado sábado, 13 de janeiro, o dia de nascimento e, simplesmente, a minha Mãe baralhou a agenda, adiando os pés à “dêxa”. Não havia gaveta nenhuma para esconder comida. Sem barriga, nem crianças vizinhas que a minha Mãe buzinava – «comida não chora gente, nem vai ao lixo» – fartura partilhada de trabalho no gelo e sol abrasador, a enferrujar músculos e ossos, viu caminho de volta a alguns domicílios.
As famílias que compõe a comunidade fundada por ilha do Príncipe, há quase três décadas e florida, na última década, por pessoal de São Tomé, além de notícias frescas de gargalhadas a erguer espírito ao teu filho, houve quem esticou-me envelope de “finta”, inclusive euros vindos de Lisboa. Houve criaturas, não menos atrevidas. Exigiram-me de lá, a capital portuguesa, conta bancária, a qual caiu “finta”, a tradicional contribuição financeira, apesar dos teus filhos, precavidos e préstimos valiosos dos netos, Anatília, Alailzy, Miguelinho e Celma (o trio, teus cuidadores), ao longo da tua batalha no leito, quase 11 anos, devolveram possível dignidade à tua cruz e pouparam no BISTP, plantas para tudo e até ao teu desejo, a banda de música militar com que a tua Trindade te brindou cortejo fúnebre.

Bailada aos vizinhos

Mãe! De penumbra e gravata preta por cima da camisa meio azulada, no domingo, a seguir ao almoço esticado ao jantar, eu não resisti ao canto pesaroso. Subi calça preta e violentei algumas das campainhas dos franceses e italianos do condomínio. Não havia de manter-lhes surdos. Para lá da sirene do auscultador e das frequentes entradas e saídas africanas - entre nós, ninguém fuma - houve quem refugiasse no corredor e na escada, a gritar com o telemóvel, ao nosso feitio, mesmo em papo romântico. Em atracção à boa vizinhança, roguei-lhes perdão pelo incómodo daquele sábado, em honra à eterna viagem.

Oh Mãe! Na peripécia de emigrante, não permanecemos uma semana à espreita da missa do 7º Dia, ou seja, os homens “lavando-pedaço” e as mulheres “lavando-baixo”, na expectativa do primeiro banho, após perda de Mulher grande do quintal. Nem tão pouco, demos jeito à rotina de limpeza de casa para não afugentar o bondoso espírito da defunta. Completados os 7 dias e as 7 noites, no regresso da missa, para a qual, os herdeiros seguiram de manhã cedo, em fila indiana, à nossa paróquia, os filhos, netos e bisnetos, em fato preto, fizeram três voltas ao quintal? Deram refeição grande de “comes e bebes” aos presentes? Não é assim!?
Cá, a tradição não goza de tempo, nem disponibilidade familiar para o cumprimento rigoroso. Na ausência de tomate maduro, vamos ajeitando com a malagueta vermelha.

Luto além-fronteiras

Mãe! O teu filho beneficiou da legalidade de três dias de luto e regressou à rotina profissional, sem que a empresa, por descuido, até hoje, volvidas quatro semanas, lhe jogasse as morais condolências. Após noite do teu último fôlego, como deixei claro na «Rumba à minha Mãe San Mosa», pessoalmente, forte e com as lágrimas despertadas, mas amarradas com a corda de aço, corri à rotina profissional, nem os galos haviam cantado às ilhas. Quatro horas de madrugada gelada, a dançar dentes e músculos, o mesmo rumo da tua nora, mais tarde, quando o dia abriu luz aos Alpes-marítimos.
Um encontro despropositado pelo teu espírito. A 1ª colega com quem cruzei - mais nova que os rebentos que, eventualmente, deste luz – bem-disposto, eu assumi comando ao diálogo. Não sei como ela, a Mãe de três lindas princesas, foi capaz de desconfiar da falência na habitual sinceridade. Com as asas quebradas, não resisti e informei-lhe da eterna viagem maternal.
Ela - francesa casada com um africano da nossa sub-região continental, algo rotineiro neste país para os filhos nascerem, apesar da direita radical, também esculpidos por Deus - levantou mãos à cabeça, como eu, injusto, estaria a atender os “pacientes”? Vi-me criança, a molhar o colo feminino com o choro que não parava por mais que ela consolasse o filho da Mãe, perdida na noite de Santo Domingo. Fui mimado, ao ponto dela assumir em abrir o «bureô», às 9 horas, com o alarme social de má-nova, a morte da Mãe do colega. «Vergonha muito!»
Oh Mãe! Para não passar por testemunho de falsa Mãe, graças à Deus, através do Certificado de Óbito, enviado de São Tomé, por Raul, o teu filho, deputado, presidente da Comissão Parlamentar especializada e professor universitário – o poder atual, receia-lhe na vice-presidência parlamentar - confirmei à empresa do teu destino ao Céu. Alguns colegas franceses, um alemão e o cabo-santo-luso que souberam das lágrimas, em substituição patronal, correram-me ao telemóvel e, não só.
Para ser sincero, o vexame de nada tem a ver com a medição de sentimento, mais ou menos choroso, mas com a intensidade violenta na partida à eternidade de parte do coração, difícil, mas obrigado a tocar vida, em frente. Nestes dias, para o faz-de-contas, uns colegas vão-me bombardeando com progenitores falecidos, recentes, sem jamais serem prenúncio de anormalidade aos meus ouvidos paralelos às bocas deles, os filhos dos malogrados.
Cá, confiado os entes queridos à última morada, os herdeiros, olhos secos, partem a cuidar de vivos e, se exigente, os filhos regressam ao posto profissional, no mesmo dia, sem que os colegas, quase sentados frente-a-frente, se apercebem do falecimento da idosa. Lavam as mãos de cemitério num bar ou restaurante e, através de pratos, talheres e copos, lancham ou almoçam e fazem partilha da herança, ao público, se necessário, perante um representante da lei para validar, o assunto arrumado, a morte, o verso das duas fases da moeda.

«Como largá minha Mãe pô un chão!?»

Mãe! Ontem, 3 de Fevereiro, dia do Massacre de 1953, ressuscitou em mim, mais memórias de San Tilha e filhas, a despertar com a vassourada de sangue do senhor Pontes, seguida de razia de judeus, mestiços e forros e, a vossa fuga da Trindade, arrastando crianças. Pista válida para descortinar quem é a verdadeira Mãe dos filhos. Bebiana ou Ambrósia? Ainda eras rosa-de-porcelana virgem, brilhante e intoxicada, mas sem compromisso, celebrado mais tarde ao nó do enfermeiro de Almeirim.
As emoções, em banho-maria, impuseram-me, óbvio, a correr ao Estado e aos familiares para ter a Mãe, a verdadeira, paciente, frontal, solidária, cujo sorriso, até rivais, enteados, dezenas e dezenas, estenderam tapete vermelho na existência e verteram lágrimas na Partida Eterna. Com a oferta de colo fraternal, alguns irmãos dos teus filhos, os Sousa Pontes, claro, Horácio e Arlete, ligaram-me no consolo à família e aos familiares.
Empoleirado os filhos, cada um, no cimo das diferentes montanhas, altas e baixas, não perdeste foco no dia-a-dia dos netos, nas mãos e costas, na saúde e alimentação, na alegria e dor, apesar do rumo envelhecendo a idade que ainda te deu prazer, já acamada, divertir bisnetos. Conforme replicates na última “gravana”, ao meu colo, quando na pausa de dores, arranquei-te o sorriso maternal, «bô ká kô anzu» - «és ingénuo» - não é imperativo de que a missiva do filho, beneficiado décadas de Amor da inesquecível Mãe, contenha lágrimas, mas tão somente Gratidão, em exclusivo nome de San Mosa, ao todo mundo.
Oh Mãe! Em tua honra, os herdeiros das duas Mães oficiais com que tiveste a ousadia em enganar a vila, a igreja, o Estado e a cidade, mais de 90 anos, não obstante piso escorregadio com lombas nas esquinas, próprias da espécie humana, mas sem rotura, saberão pela herança, dividir em partes, iguais, a única fortuna que confiaste aos filhos, netos e bisnetos. Amizade em jóias de ouro.
Ao teu jeito humilde, foste a fonte de inspiração aos filhos Batista, Raul e Maria José para confiarem-me a singela carta digital de Santo Domingo, numa inaugural fórmula de homenagem na 1ª página de jornal à MGM e, não só, mas com as várias versões. Por ti, basta Mãe, a Guerreira Mulher. Não! Mosa, a Grande Mãe dos filhos, netos e bisnetos.
Mãe! Desistência nunca foi teu vocábulo! A não adaptação à triste realidade de viver, sem ter tido uma Mãe, verdade que se diga, duas Mães reconhecidas pelo Estado, eu desapaixonado, vou manter acesa a filosofia da vida, ou melhor, busca por mim do acervo familiar. À luz divina, na procura de uma Mãe, Ambrósia ou Bebiana, embarcada à eternidade, aos 90 e 94 anos de idade, respectivos e, no mesmo dia e na mesma hora, num só leito, dor e sofrimento, tenho fé em vencer obstáculos que venham a impedir ao Estado de não certificar a verdadeira progenitora aos filhos.
Minha Mãe San Mosa! Descanse em Paz Eterna!
O teu filho,
José Maria Cardoso