Jornal FUGIFALA

Edição Especial

Domingo, 12 de Janeiro de 2025

Ano Novo à minha Mãe San Mosa

Mãe! Não era de imaginar que num abrir e fechar de olhos, como se fosse um estalar de dedos, as estrelas adormecerem nos nossos olhares indefesos. A Lua foi ao escuro e veio. Foi e veio na vadiagem celestial, cumprindo a penitência de vestir claridade à escuridão. A Terra completou o passeio de trezentas e cinquenta e seis horas, perseguindo o rasto do Sol com aquela flor envelhecida, assumindo no passado dia 7 de janeiro, um ano do desaparecimento físico da nossa Trindade que lhe viu nascer umas nove décadas atrás.

Oh Mãe! Na verdade, um ano! Como no ano anterior, no propósito de festas felizes aos herdeiros, por cá, o “plé-mundu”, a terra distante, o champanhe voltou a embriagar tristeza de Natal e Ano Novo, sem aquela guerreira elevada estrela no Céu.

Autópsia da Alma

Mãe! Como estava escrito numa das páginas do destino, a chave de ouro para autopsiar a alma, algures no seu baú, agora lá no Céu, abriu portas ao público e não tenho como não reconhecer todos quantos desafiaram Lisboa, na tarde de sábado, 14 de setembro passado.
Atentos num olhar romântico, poético e memorial, familiares, amigos, curiosos e anónimos, na corrente de leitores, assistiram algo de cheiro completamente tropical para o aquecimento de Lisboa que dava os primeiros sinais do frio que não tardaria a bater portas e aprisionar os humanos em peças de roupas, até quatro, quase a afogar os poros suados por falência de calor.

Oh Mãe! Entre os agradecimentos aos presentes no Lumiar, na Biblioteca Orlando Ribeiro, nada melhor que os postais na primeira pessoa. Nesta rubrica, não há como, não assumir assalto à página 70 de “Ellyzé - Autópsia da Alma”.

Batista, Inácia, Ilda e Hermínia
Batista, Inácia, Ilda e Hermínia

Réplicas do suspiro

« - Meu filho, o inferno é aqui na terra! Quem faz mal, paga antes de entrar no purgatório.
Caiu-me duro o arquivo de miúdo. Não questionei a advertência da sióra Mosa, por suspeita, acamada e assistida presencialmente pelos netos (Alailzi, Miguelinho e Celma), desde que fora vítima de AVC em 2013. Pés assentes, deparei-me com a Ellyzé a não se enquadrar, nem beneficiar de agenda mínima de salvar eventual veneno, impregnado nas bolsas alheias.
Todo o sacrifício merece o bem de não convencer de que ela tivesse cometido crime, traição ou desvio moral, sem ser ilibada da sentença fatal. Propensos ao pecado, aprendemos na Santa Igreja a não pisar o risco. Todavia, perdidos ou distraídos da fé impingida nos Dez Mandamentos, «Deus condena pecado, mas perdoa e recupera o pecador», sem necessidade de subir, de relâmpago, aos céus.
Por mais que envolvesse no cobertor da escuridão, os furos deixavam penetrar, pelo âmago dentro, desfeito e em distúrbio dilacerante, o ar transportando profecias congeladas. Deu-se uma veloz cambalhota no fato de gala, em rigor possível, escamoteando os defeitos.
Por detrás do palco, não somos exceção no vinho com água para matar a sede à festa como lá na Baixa, onde as guerreiras acrescentavam água e açúcar para diluir o efeito do álcool para os adolescentes, nos dias dos padroeiros da vila – Deus Pai e Nossa Senhora de Nazaré. Não só, como também na Páscoa e no Natal, e no equilíbrio anual.

Ondina, Cristina e Fernanda
Ondina, Cristina e Fernanda

Não existiam festejos das datas de aniversário, na família e nos vizinhos, o que possibilitaria a algumas crianças – ainda que no último ano da primária – a terem na ponta da língua, os dias de nascimento. As ondas gigantes empurravam contra rochas a alma frágil, naufragada, desfazendo-se num vazio absoluto. Nada! Jazia no leito, sem faustosa alegria de respirar a tão apelativa vida, a morfologia da jovem mulher mestiça, desenhada criteriosamente pelas mãos divinas.
Num misto confuso de sentimentos, eu carecia de um convento introspetivo para estar a sós, na ousada reflexão sobre os estrondos da madrugada, onde eu pudesse cicatrizar a ferida de uma cura imprevista a pingar sangue, mesmo numa consulta com os mais visionários especialistas da mente.

Eu buscava, em vão, uma razão para comandar o consolo espiritual. Numa lista extensa de inimigos com mãos venenosas no gatilho pronto para rebentar-me os miolos e calar-me a expressão da palavra livre, nenhum só reclamaria dívida a pagar com a própria vida. Não restava ângulo por onde eu pudesse escamotear a ansiedade de replicar, quantas vezes fossem necessárias, a verdade em mentira ou vice-versa.

Anatília, filhas e Maria José
Anatília, filhas e Maria José

Uns anos medidos por passos adiantados, no alinhamento de astros, eu havia sintonizado o coração à Dalila – uma jovem estreita de Obolongo, que nem a minha rosa-de-porcelana de vinte e um anos. Eu no papel de Sansão, prisioneiro, afinquei-me na extremidade do romance, porque na linhagem natural de continuidade dos genes familiares haveria de ser ela ou outra rosa de espinhos, cedente ao fado, habituado ao cárcere de estrofes rejeitadas por um poeta qualquer.
Cancelei, de seguida, as parábolas de amor e aprisionei-me ao projeto que há muito deixou de ser dos pais; tal e qual a sióra Mosa prevenia no quintal da Baixa, o ensinamento transitou-se à coerência dos filhos. «Um tarado londrino ou de qualquer outra latitude, sem compensação de sentir a dor do pai, põe fim à vida da filha da Betinha?»
No meio da obesidade da dor, na imensidão do mar de luto a envolver convulsões na alma cinzenta de desespero do pai, eu ainda não me havia deparado, frente a frente, com o autor do assassinato da primogénita.
As duas personalidades, das mais problemáticas do universo, como as disputas entre o ocidente e o leste, apressaram-se em deixar o ser imperfeito e inútil ao bel-prazer da treva. Impingiram-me a embriagar-me com o jogo delas, e eu, por vezes acobardado, consolava a melancolia com as lágrimas nos cantos dos olhos.

Aldair
Aldair

Com o passo em falso, sem mesmo avançar para questões de desvendar luto por Ellyzé, hibernei-me num dos abrigos de um outro planeta mental, não plastificado pela negligência industrial humana. Eu tinha a consciência mutilada, em confronto permanente com a notícia rocambolesca e tentadora de manter em pé o rigor de qualquer informante.
A alegria deparou-se na difícil encruzilhada de dar sentido à vida. No assento, a tristeza, num tom agressivo, abusivo e imbecil, envaideceu-se na destruição da mente com imposição da guerra, soberba e fratricida.
Eu buscava respostas exatas onde não havia perguntas. Detetava questões sem soluções lógicas de como medir os passos no conflito congelado, receoso e asfixiante. Lancei-me na penitência, a sangrar a alma, de decifrar o código da morte da própria filha.»
Bonzuanu!
Do seu filho,
José Maria Cardoso