Jornal FUGIFALA
Edição Especial
Domingo, 9 de Fevereiro de 2025

Vida Eterna à minha Mãe San Mosa
Mãe! Que grande sarilho!? As noivas, para satisfação pública, eram submetidas à coisa chata, muito similar a testes de pureza feminina, precisamente na noite de lua de mel? No livro “Ellyzé – Autópsia da Alma”, dei ênfase à infância na vila, mas fui censurado por uma leitora. Na casa de meio século e jovem de dezanove anos, quando deixou Santomé rumo à universidade, garantiu que aquelas meninas-virgens, jamais passaram por tal humilhação, retratada na obra. Tudo não passou de olho-leve do escritor.
Oh Mãe! O propósito de exportar São Tomé e Príncipe ao mundo, não somente por rebeldia criativa, “vungunu-vangana” democrático e sócio-económico, tem custos. A preciosidade arável, paisagem turística e chuva que chovia d’abuso, num contexto bastante desafiante e alcançado, a partir do alto mar tempestuoso e de consequências imprevisíveis nos corações da família, completamente temperados de dor e luto, para a partilha das páginas, têm encontrado, felizmente, o feedback de quem o filho menos imaginasse, já que de palpites, todos foram emboscados pela provocação poética da capa do livro da Pena Real.
Com o pouco de fôlego no espírito esfarrapado, mas inspirado pela alma feminina, me vi envolvido na linguagem doméstica, apoderando de “assobio com que fiz cantigas” na especial merenda literária de dar de comer aos curiosos, muitos oportunos da tarde de Lisboa, 14 de setembro, o sábado do lançamento da obra, no convidativo auditório Orlando Ribeiro, no Lumiar, aos quais de edição em edição, revejo em reconhecimento público com os respetivos postais, a especial oferta do programa, Nós por Lá.

Mãe! Hoje, para a reflexão coletiva, proponho recuar por uns minutos de olhos à consciência na travessia ligeira à contextualização na página nº 20, que deixou em cólera a leitora de “Autópsia da Alma”.
O bom, foi ela ter dito que tem digerido melhor a leitura com o livro aberto aqui e especialmente com a protagonista, a Ellyzé, na primeira pessoa. É de todo primordial que nesta rubrica, os leitores de FUGIFALA, me libertem da cadeira de réu.
No nosso país, para exposição pública, as noivas eram mesmo submetidas a testes de pureza feminina, na noite de lua de mel? Sim ou não?
Pureza feminina
« - Agora que convivo muito mais de perto com a comunidade, por intermédio de uma amiga voluntária, vivencio a ciência dessas nossas vizinhas jovens a quebrar a tradição cigana.
Era nos rotineiros almoços dominicais, quando calhassem as minhas folgas, e a família juntava-se à mesa, a bater talheres, que disponibilizávamos os ouvidos à narrativa juvenil. Atividades desportivas escolares, envolvimento em grupos de angariação de fundos sociais, como fora contagiada com a participação no Kuá Téla (o grupo juvenil-cultural são-tomense, em Ameixoeira), impulsionaram a menina-moça a enveredar-se pelo voluntariado e cooperar nos programas para os necessitados lisboetas e nas gincanas de esvaziar com positivismo, a energia juvenil. A Ellyzé jamais se rendeu às quedas do cérebro, desafiando-nos com a língua afiada, própria da reivindicação etária para marcar o terreno pessoal.
- Rebeldia da juventude e desejo sexual impõem regras, ainda que ocultas, em qualquer relevo social tido como conservador como o meu convento, sem plantas de dar ameixa.

A Ellyzé ensaiava estratégias de como trazer as abordagens de Portugal para nossa casa. Pus em pé os dois pavilhões, em paixão desmedida e audíveis a qualquer sinal liberto dos lábios. «Até que ponto chegou liberdade e democracia!?» Não me expondo ao julgamento da assembleia familiar, preferi engolir as palavras para o fundo do estômago, o reservatório utilizado, por vezes, para acumular descargas não libertas pela garganta.
Na primeira tarde invernal, já no novo bairro, Ameixoeira, fomos mais longe nas festividades de transição do ano, que foram bruscamente suspensas. Escutei, com devida atenção, o alerta policial, mas estranhei o aconselhamento para inteirarmos na tradição dos nossos vizinhos. Quis partilhar com a dupla de agentes que nas ilhas se salta o ano com explosões e tudo de festejo sonoro, em alvoroço.

Não havia guerra entre pretos e ciganos, como era propalada nos horários nobres da TV; a comunicação social, na exagerada liberdade de expressão ou falta dela, sem uso da força bruta que os mais fortes impuseram ao longo da história humana, no seu domínio, em conluio de interesses patronais preconceituosos e até religiosos, ao olho nu, discrimina minorias.
O fecho do friorento ano de 2007, o mais longo dia nas ilhas tropicais, foi-nos adulterado no percurso europeu; as munições testadas pela vizinhança ficaram cravadas à beira da janela do apartamento, no terceiro andar.
Um mundo surreal, onde fomos as testemunhas vitimadas pelo insólito acontecimento.
A Polícia de Segurança Pública, chamada à ocorrência, para não ficar desenquadrada na fotografia dos Direitos Humanos e das Convenções Internacionais, desclassificou as balas mortíferas e acalmou a tensão latente, entre dois mundos distintos classificados como minorias. A dividir a fronteira com vizinhos discriminados e mal-amados pelos direitos, vistos como excessivos e utilizados pela direita radical para conquistar votos eleitorais, dever-se-ia anualmente receber alguma indemnização da Câmara Municipal de Lisboa.
Os taxistas oferecem-nos fundamentos na ponta da língua.

No preenchimento do teste civilizacional, o brilhante projeto da Câmara Municipal de Lisboa, liderada por Pedro Santana Lopes do PSD, transferida depois, por votos lisboetas, a António Costa do PS, Deus não permitiu que tivesse havido sangue. A notícia de ajuste de contas do tráfico de estupefacientes entre vizinhos da minoria, subia à comunicação social como um relâmpago. Os furos na parede, a não serem confundidos com qualquer espécie de extremismo, envelhecem, eventualmente, até que o prédio venha a beneficiar de obras exteriores para lhe devolver a juventude, embora a opaca valorização comercial.
O tempo não apaga tudo!
Nas ilhas, não eram somente os corpos humanos viciados em fundão e farras que estariam a anestesiar-se de qualquer mal-estar físico e psíquico para, num só musical, despedirem-se do ano velho; era também a elite que, noutros tempos, descia à cidade para embriagar-se aos goles d’Os Untués – a banda musical divorciada da Trindade – no salão do Clube Sporting.
Escapes de motorizadas e automóveis barulhavam de tarde à noite adentro para afastar o espectro até ao amanhecer e lavar a velha consciência nos paradisíacos areais de coqueiros verdes entre o azul do imenso Atlântico, de riqueza maior que as de mil metros quadrados de terra que circunda de praias fantásticas e proveitosas para as finanças internas, através do turismo.

- No cerimonial de casamento, antes da noiva seguir para a lua de mel, as avós, dentre as mais velhas da comunidade, exerciam a missão preponderante em que os pais da jovem poderiam, na ausência de pureza, ter de indemnizar os pais dos noivos. Aprisionada num espaço ao dispor das anciãs, uma das especialistas de cabelos esbranquiçados, através do dedo denunciador, iria comprovar a existência do hímen na noiva. Em alguns casos, acabavam por “descamisar” a miúda. Não é assim que se diz em santomé, tirá-la virgindade?
Na conversa, advoguei à causa, adaptando o prazer ao almoço e, em solidariedade feminina, roubei a expressão à sióra Mosa:
- De uma só vez, Deus, o mundo fez.

Por várias latitudes cruzam-se vivências em que mulheres continuam objetos de jogo masculino, o que me remete à dura batalha das jovens guineenses contra a mutilação genital feminina. A maldição, pelo mundo, mata diariamente oito mil mulheres e deixa tantas outras com sequelas físicas, emocionais e sexuais. A Ellyzé prosseguiu na incursão, debaixo dos nossos olhos.
Atualmente as moças, peritas, aplicam fintas à tradição, mesmo quando os casamentos não são cozinhados pelos pais. Na noite anterior, no meio da festança, o casal despista-se e só se recolhe às respetivas famílias de madrugada ou mesmo com o sol a raiar pelo festivo bairro, abarrotado de convidados de todos os quadrantes.
Aproveitei a deixa e passei à oradora, um testemunho similar e filmado pela infância do pai.
- Lá na terra, a fuga dos noivos do salão de casamento era escoltada pela madrinha do noivo que se esforçava, em pé da lei, a hospedar-se num quarto na vizinhança fresca da celebração mais ousada da paixão feminina. A “juíza” não arredava os pés para que na manhã de domingo, cedo, pudesse invadir o quarto alheio.

- Para quê meu pai!? Que interferência abusiva! Vai-se lá entender o mundo dos adultos, sem limite em imiscuir-se até no sigilo restrito ao casal! A madrinha não tinha receio do pescoço se vergar com o vento tempestuoso a ser libertado do quarto dos noivos!? Tamanha paciência, sem mínima claridade racional, absurdamente, a violentar a lua de mel!
- A juíza apossava-se da prova do crime – o sangue do rompimento do hímen no lençol branco, do qual se serviria para testemunhar ao mundo expetante, o cumprimento das regras do jogo, a perda da virgindade.
- Quando a infidelidade antecedesse ao princípio do ato matrimonial, em alguns casos até, para ocultar alguma violação ou outro ato com mãos criminosas do progenitor, padrasto ou qualquer próximo, não havia fora de jogo. O marido, em nome da razão do amor, cedia ao campo feminino e “desflorava” na mesma sua rosa de porcelana, a amada noiva.
Embora seja um terreno de domínio feminino, nunca entendi os homens jogarem o desejo de casamento às mulheres, eu não permiti que a Betinha esticasse por muito a sua cantiga.
- Na manhã seguinte, a madrinha, ansiosa, levava à exposição pública o vestígio da tão aplaudida virilidade masculina; o lençol com o salpico avermelhado da flor brilhantemente despetalada na noite nupcial, serviria de prova ao expetante bairro, de um cavalheiro beneficiado da noiva de princípios intactos. Em jogo, a pureza de corpo e alma feminina.
- Como assim!? Não entendi essa, meu pai. A noiva tinha sido violada ou, no mínimo, já tinha perdido a virgindade, se é que a natureza lhe havia tatuado algum véu cultural. Certo? Então! Donde provinha o sangue? Do período menstrual?

Alguém tinha de prosseguir de forma explícita para a satisfação da filha incrédula ao testemunho de um tempo não muito longínquo.
- Não, minha filha! A noiva salpicava o mercúrio, devidamente disfarçado numa garrafinha, muitas das vezes, pelo próprio noivo. Estás a ver como era o amor daquele tempo?
Em fora de lance, mas bastante oportuna e prestativa, a mãe detalhou o sentido da vida, na mais perfeita das palavras de coabitação humana, o Amor.
- Chêi, mas que interferência absurda na sexualidade juvenil!? Com tanta pressão tradicional, a depressão ameaçava mulheres até na noite nupcial!? Quê da virgindade daquelas jovens roubadas aos namorados pelos vossos avós a fim de seguirem na encomenda sexual para Angola?
Ninguém chegava num pé ao porto luandense, através de Uíge, o navio misto de mercadorias e passageiros que ao zarpar do cais de Ana Chaves, a ensurdecedora buzina enviava mensagem lacrimosa aos rapazes da vila – cabisbaixos à cantiga Bua Muê dos Leonenses, na voz do saudoso Pêpê Lima -, anunciando a perda definitiva das respetivas namoradas, em missão romântica ao desconhecido noivo, quase sempre, ligeiramente, uns anos de idade à frente. Avião era um luxo tal, que obrigava os passageiros a percorrer, de barco, semanas inteiras entre o mar de São Tomé e Luanda.
Santos todos pecadores, com virtudes e defeitos ao retirar o apreciável mel das palavras, ao jeito das abelhas. Por mais que busquemos ser a “virgem imaculada”, rejeitando o ferrão, o pecador vê-se em desarmonia.
Refugiei-me na inegável canção de despistar o velório, “Monami” (meu filho), da angolana Lourdes Van-Dunem, melodia pela qual eu outrora me apaixonara e escutava em tom alto de arrebentar os tímpanos em Ameixoeira.»
By “Ellyzé – Autópsia da Alma”
Consternação

Mãe! Mais uma mão de palavras.
Naquela quinta-feira, como de rotina, introduzi os pés de regresso do dia laboral na sala mista francesa e, fora de boas vindas, a TV estava ligada, mas sem o som à noite de 16 de janeiro. A Elisabete quebrou o meu olhar cético.
- Você, ainda não sabe!?
Sem que eu a respondesse, caiu dela o esclarecimento.
- A minha xará não resistiu à violação e violência assassina de cobardes sexuais de Pantufo.
- Mas porquê do pai ou, eventualmente, padrasto da Elisabete, nunca foi notícia, se os abusos sexuais, são e até por mundo afora também manchados por malfeitores de casa, ou seja, membros da própria família!?
Fragilizado, questionei a sua nora, silenciosa, destroçada e de olhos molhados, - só Deus sabe do gelo derretendo nossos corações quando notícias de mortes juvenis, esbarram mentes cá em casa - mas na expetativa de resposta das autoridades de investigação são-tomense que volvidos sete meses, deixam os assassinos ativos aos novos ataques como o que nos chegou, a partir de Bobo Forro, no dia a seguir à eterna partida de Elisabete. Uma adolescente da mesma idade, 15 anos, teve de escapar, saltando pela janela para se defender de um predador sexual encapuzado e que se pôs em fuga.
- Dizem que a Elisabete já não tinha pai.
As meninas, já não vivem em segurança no lugar até, bem pouco tempo, mais seguro do que as próprias instituições do Estado, onde os responsáveis abusavam da vulnerabilidade das jovens funcionárias.
Oh Mãe! O pensamento direitinho invade a dor pela curta vida da Elisabete Bom Jesus, a vítima sexual que se tornou símbolo nacional de ultrapassar o Atlântico, respirada pela última vez, no hospital pediátrico de Coimbra, na manhã daquela quinta-feira, 16 de janeiro.
O sentimento de pêsames, vai à família e aos familiares de Elisabete, a menina violada e sacrificada ao estado vegetariano, que permaneceu por sete meses, sem recuperação, apesar da solidariedade de gente de boa fé que buscou, tarde demais, a sua salvação em Portugal.
Elisabete Bom Jesus! Descanse em Paz Eterna!
José Maria Cardoso