Jornal FUGIFALA

Edição Especial

Domingo, 9 de Março de 2025

Esplanada da ilusão à minha Mãe San Mosa

Mãe! No mês findo, fevereiro, assim como os estudiosos animados com a tinta de reescrever a História, retirada intencionalmente dos compêndios da democracia, a razão dos jovens desconhecerem o Massacre de Cinquenta e Três, eu fiz as contas; a verdadeira minha Mãe, de jeito algum, calha à Bebiana, nascida em 1929. Tudo aponta para Ambrósia, cinco anos mais nova. Vejamos: Uma menina de 24 anos, naquela época de firmeza educacional, ainda permanecia em casa para que fugisse da vila sangrenta pela raiva colonial, em 1953, na companhia da sua Mãe, a avó San Tilha, ao refúgio em Madre de Deus?

Oh Mãe! Seja como for, está aqui uma evidência de que as meninas da vila não corriam atrás de adultos para serem mães aos treze, catorze anos. Isso mesmo. Apesar das nossas bisavós embarcarem à eternidade divina, na casa de oitenta, noventa anos de idade, muito mais tarde que os seus pares que poucos chegaram à idade de bisavôs, apenas um caso de trisavó, foi nossa convivência.
Para o espanto dos gaiatos, ela foi mãe aos 15 anos de adolescência, chegando a ser avó, bisavó e trisavó, a única deste título na vila, quando faleceu com pouco mais de setenta anos.

Mila
Mila

Mãe! De número em número, as sorteadas páginas de Autópsia da Alma têm gerado interpretações e julgamentos do público, mas o mais interessante, alguns dos leitores na posse do livro da Ellyzé, descobriram a fórmula de leitura, assediados pela exposição aqui e, significativamente, outros enamorados pela partilha, voltaram a devorar o livro de A à Z, isto é, degustaram-no uma vez mais de ponta a ponta.
Hoje, o destaque aos novos postais de agradecimentos às presenças no auditório Orlando Ribeiro, na tarde do memorável de 14 de setembro, no Lumiar, a boca e nariz com Ameixoeira, uma das residências lisboetas da Ellyzé, vai para a “Esplanada da ilusão” da obra literária Ellyzé – Autópsia da Alma.

Inácio Bandeira e Celeste
Inácio Bandeira e Celeste

Esplanada da ilusão

« - Faculte-me a lista das vossas inimizades e as da vossa filha.
Apanhei um murro no estômago. Pouco hábil à cartografia londrina de arquitetura medieval europeia e, visivelmente, sob risco de atrapalhar o passeio à cidade, eu não me dispunha de farmácia por perto onde pudesse encontrar algo para estancar o vómito. O olhar suspeito deu para descortinar a inusitada missão do interveniente. O gole que arrefecia a manhã à quarta-feira foi expulso da minha garganta e quase pintava-lhe o rosto, obrigando-o a suspender os selfs e aplicar-me os primeiros socorros de modo a acalmar o engasgamento, como se na mesa estivesse um tabuleiro com as peças do xadrez.
- I’m sorry! - Bastou o meu inusitado pedido de desculpas. - Pode parecer algo inconveniente para si, mas fico com os pés atrás. Para efetivação da operação, apesar da melancolia, não existe outra alternativa senão a de encarar, de frente, o facto consumado.
O garçon, na satisfação dos clientes, tinha oferecido dois copos desiguais: um barrigudo com cerveja e outro delgado, em obediência à abstinência alcoólica, desde o trágico anúncio de Londres, enquanto o meu interlocutor se divertia com coscuvilhice no terreno alheio.
- Vou enviá-las aos Estados Unidos para vender a imagem dos ingleses com pratos abarrotados, talheres e copos de cerveja no estômago logo de manhã.

Vanda Fernandes
Vanda Fernandes

Estávamos em campos adversários: um de investigador, outro, de um pai curioso. Daí, era exigente nos situarmos no holofote da missão. Só assim, as ideias desembocariam em informação a transitar, do indivíduo contratado, para esclarecer o enlutado pai, visivelmente transtornado, todo o imbróglio, ainda que o funeral, já realizado, tivesse reduzido o corpo da filha a cinzas.
- Da audiência mantida com o senhorio da sua filha, havia toda a necessidade de limar as pontas e nos conhecermos um pouco mais. Estive no funeral, no City of London Cemetery & Crematorium. Não quis ser delegante em vos abordar naquele estado degradante da alma. É que não foi difícil chegar perto de vocês. Era um funeral de lágrimas insuspeitas.
Bêbado de dor, não perdi tempo. Com a boca disponível à invasão das atrevidas moscas, vasculhei as presenças arquivadas na lembrança do crematório que se apoderara da defunta na manhã anterior, 19 de setembro, e não vislumbrei um só sinal humano de confiar, por inteiro, no discurso do informante.
Por mais que a missão sigilosa abalasse a confiança das pessoas anónimas que nos cerraram as mãos para abafar a dor de perda consumada, eu não havia rasurado a memória de vinte e quatro horas. Estavam frescas, sem nuvens cinzentas que, em pingo de chuva, pudessem lavar o episódio e forçar o esquecimento. Predispus-me a jogar na relação, baseando em confiança e respeito mútuo, já que nenhum americano iria dar, gratuitamente, o seu préstimo, sem ter os olhos na estratégica geografia que São Tomé e Príncipe simbolizava meio do mundo.
A atribulada aceitação do ato consumado compelia as mãos no queixo, de pessoas próximas que reconheciam a fraqueza no marido, visivelmente refletida na queda física, em contraste com a esposa, aprisionada às lágrimas que, eventualmente, eram responsáveis pela aquisição de alguns quilos, expostos à vista nua. … //…

Celma Trindade
Celma Trindade

- Para concluirmos uma das páginas deste mistério, sou forçado a tocar no interior do sentimento e deixar tudo às claras. Não vou fechar a missão. Pode levar anos necessários a não precipitar o código da morte. A pressa é inimiga da precisão.
- Como assim!?

O semblante cinzento que me cobria o rosto desvendava novas polémicas. «O corpo desfeito em cinzas, numa câmara ardente inglesa, dispunha de qualquer matéria à investigação científica?» Já não havia resto humano possível de ser exumado do barro britânico.
- Você pretende me tratar por mais um preto parvo, igual aos políticos que rubricam contratos internacionais que dizimam o povo africano?
Mal ergui os lábios à ponta final do discurso, para que nem ele, nem os ouvidos do restaurante, visivelmente ávidos por bisbilhotar a conversa alheia, levassem a mal, a dureza e o tom do desabafo, descarrilando, pudesse provocar.

- Trago questões à volta da saúde da vossa filha a ser preventivas à família. Antes da chegada, estava, uma vez mais, a vasculhar as fotografias enviadas por e-mail pelos colegas nas misteriosas ilhas. Os meus olhos ciumentos renderam-se à deslumbrante Praia Pomba, onde se localizam as nossas antenas de retransmissão da Voz da América para a África.
- Não! É por perto. Chama-se Pinheira-Praia, o território americano nas ilhas; local onde os são-tomenses nem metem os olhos. Há mais com que se preocupar, por exemplo, o roubo da areia que tem destruído a famosa Praia Pomba, como a generalidade das praias do país. Na troca do estratégico local de retransmissão, nem universidade, hospital ou outra infraestrutura foi erguida pelos EUA.
- Na Guerra Fria, a ex-União Soviética armou o país de meio bélico com radares que, na Primeira República, identificavam os navios perdidos e salvavam vidas humanas. Também formou os primeiros quadros superiores para alavancar o país. A Alemanha Oriental construiu fábrica de tijolos e requalificou a Rosema, a única indústria. Os chineses edificaram o Palácio dos Congressos na Vila Maria, a poderosa casa legislativa.
Não só! Não nos caiu do céu a expressão, “Só na China!” Num só descarregamento de navio, para celebrar o relacionamento com o estado independente, a China inundou o mercado com tudo; de agulha a elefante.

Plateia
Plateia

- Cuba ofereceu médicos, professores e assessores. Foi mais longe: a primeira caravana com centenas de adolescentes e jovens, que saíram das ilhas atrás de conhecimentos, foi para a ilha da Juventude, ao convite do presidente Fidel de Castro. Portugal acolhe e salva pacientes sem saúde nas ilhas, pese embora os esforços do Instituto Marquês de Valle Flor e o médico egípcio, doutor Ahmed Zaky, desde 1988, no antigo e estratégico hospital de Monte Café. Arrisco-me na certeza de que a Jugoslávia do presidente Tito edificou a primeira novidade com estrelas, o Hotel Miramar.
Não me socorri do lencinho, nem compreendi a cara amarotada do americano. Com voz ousada, já não me preocupei com os ouvidos alheios. Até porque a tertúlia era em português. Não era de desperdiçar o momento, pelo que nem lhe deixei pegar a palavra, já que, a predisposição de ajuda chegou num bom momento.
Respirei fundo.
- A França construiu a escola técnico-profissional, de raiz, em Santo António, arredores da capital; apetrechou e formou os quadros que hoje emprestam conhecimentos qualificados ao mundo. Angola fecha os olhos às dívidas de combustível para que as ilhas não fiquem às escuras. Os taiwaneses, os mais novos com a cooperação com São Tomé e Príncipe, escreveram com letras de ouro a passagem pelas ilhas; fizeram cerco ao paludismo, reduzindo, ao mínimo número, a taxa de mortalidade da população, oferecendo mais prosperidade às ilhas.
… //…

ELLYZÉ - Autópsia da Alma
ELLYZÉ - Autópsia da Alma

Com a língua atada em culpas alternadas contra mim mesmo, Deus e Diabo, pareceu-me ter identificado o homem sobre quem a descarga da revolta se assentava bem, já que não tinha ido direto ao assunto. Os preconceitos concebidos na dominação e subordinação dos eleitos a ter o poder de decisão em África não viam no pai a mínima rejeição à frontalidade habitual da filha, nem sempre conveniente aos ouvidos humanos.
- Desculpe-me! Continuo intrigado em relação àquela luz que brilhava nos seus olhos intensamente alaranjados. Os olhos pretos da Ellyzé eram alaranjados.»
In Ellyzé – Autópsia da Alma

Mãe! Ontem foi um dia especial, 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres.
Quero desta tribuna, enviar um chi-coração às Mulheres do mundo com especial eco às Mulheres de São Tomé e Príncipe que devem fazer de cada 8 de Março, dia de conquista do seu espaço, tão necessário para alavancar o país.
O seu filho,
José Maria Cardoso